sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Guerra no Iraque: legal ou ilegal?


O debate sobre a legalidade da guerra no Iraque continuou nesta quarta-feira, aqui em Londres. Dando sequência ao inquérito Chilcot, foi a vez de o procurador-geral britânico na época da guerra, Peter Goldsmith, chamado aqui de Lord Goldsmith, tentou explicar como e por que mudou de posição rapidamente sobre a legalidade da ação militar contra o regime de Saddam Hussein. Depois de defender por meses a necessidade de uma nova resolução do Conselho de Segurança da ONU para garantir a legalidade da invasão, em março de 2003, a tempo dos ataques preparados por Washington e Londres serem lançados, Goldsmith adotou a posição jurídica de que tal resolução não era mais necessária. Ao inquérito, disse que simplesmente mudou de ideia, após reler os documentos da ONU relativos ao Iraque. Com isso, seu parecer, vital para permitir que o Parlamento apoiasse Tony Blair em sua decisão de ir à guerra, deu o sinal verde para o conflito do lado britânico.
Mas o que significa uma guerra ser legal? Não seria a guerra, naturalmente, um estado de ilegalidade, de abandono do diálogo civilizado em troca da irracionalidade da ação armada, geralmente causadora da perda de vidas inocentes? Desde que o mundo é mundo foi assim, claro, mas a Segunda Guerra Mundial mudou tudo, pois levou à criação da ONU (Organização das Nações Unidas), que tentou organizar o caos em que o planeta havia se metido. A carta da ONU, de 1945, deixa claro que nenhum país pode invadir o território do outro sem autorização expressa do Conselho de Segurança da organização. Ações militares, a partir de então, poderiam acontecer desde que fosse com o apoio do conselho ou em caso de legítima defesa (um país invade uma nação, que então tem o direito de contra-atacar).
Mas o debate é muito mais complexo. Em artigo publicado no jornal The Guardian nesta quarta-feira, o jornalista e escritor William Shawcroos defendeu a guerra contra Saddam Hussein, argumentando que: a) o Iraque de hoje está no caminho da democracia; b) mesmo depois da criação da ONU, guerras continuam sendo travadas sem sua autorização. Do outro lado do debate, há muitos querendo levar o argumento da ilegalidade às últimas consequências. O escritor e ativista britânico George Monbiot, inclusive, acaba de criar um site para obter recursos para uma recompensa àqueles que tentarem prender Tony Blair por crimes de guerra: arrestblair.org.
Shawcross tem razão ao dizer que guerras têm sido travadas à revelia da ONU. Israel ocupa territórios palestinos há mais de quatro décadas, apesar de o Conselho de Segurança já ter determinado sua saída. Os Estados Unidos ocuparam o Vietnã, Saddam Hussein invadiu o Irã e o Kuwait, a Rússia ocupou o Afeganistão, a Turquia invadiu Chipre, a Argentina tomou brevemente as ilhas Malvinas, a República Democrática do Congo virou a Casa da Mãe Joana para tropas de inúmeros vizinhos africanos etc, etc, etc. Tudo isso nas últimas décadas, sem autorização da ONU. Até mesmo a elogiada ação da Otan em Kosovo, em 1999, ocorreu sem o apoio do Conselho de Segurança.
A diferença da guerra no Iraque, polêmica que não deve morrer mesmo após o Inquérito Chilcot, foi o fato de que a invasão foi justificada por Estados Unidos e Grã-Bretanha com um argumento legal. Especialmente o governo britânico não queria iniciar uma guerra que não respeitasse a legislação internacional, já que o país quer ser visto como um defensor desses mesmos princípios legais. Combater sem o apoio da lei abalaria tal posição da Grã-Bretanha nas relações internacionais, portanto a invasão precisava, preferencialmente, ter tanto base moral como justificativa legal.
Como sabemos, o argumento da aliança Washington-Londres era: o regime Saddam Hussein estaria contrariando resoluções da ONU, por manter armas de destruição em massa, e por isso merecia ser derrubado. Inúmeros outros regimes autoritários pelo mundo, da família Kim na Coréia do Norte a Robert Mugabe, no Zimbábue, passando pelo família Saud na Arábia Saudita, não seriam perturbados, pois a questão não era Saddam comandar uma ditadura. O problema era ele possuir armas de destruição em massa, apesar de não haver provas da existência de tais armamentos. Derrubado o regime, descobriu-se que Saddam falara a verdade, ele realmente havia se livrado de seu arsenal, fazia tempos. A suposta legalidade da guerra perdeu seu alicerce e agora volta a assombrar aqueles que a iniciaram.

Nenhum comentário: